Vale do Rio São Francisco

PIRANHAS – Imagine uma cidadezinha do século XVIII que mais parece um presépio iluminado, com capelas no alto dos morros, estação de trem, casas coloridas e um centro histórico com ruas de pedra onde, ao cair da noite, o povo se junta para dançar xaxado, à beira do Velho Chico. O cenário, que mais parece saído de um livro de Ariano Suassuna, pertence à singela cidade de Piranhas, em Alagoas, onde tem início a rota batizada de “Caminhos de São Francisco”, jornada de quatro a cinco dias embalada por histórias de vaqueiros, cangaceiros e rendeiras, com paradas em Sergipe, na outra margem do rio.

O percurso de 230km é só uma amostra dos cenários que envolvem o rio mais emblemático do país. Depois que nasce nas entranhas da Serra da Canastra, em Minas Gerais, o Velho Chico arrebata afluentes por quase três mil quilômetros até desaguar no Atlântico. E é em pleno semiárido que ele revela seus mais sedutores encantos, atraindo os viajantes para terras afastadas do exuberante litoral nordestino.

Pelo caminho, suas águas irrigam plantações, garantem o abastecimento de cidades inteiras e seguem instigando o imaginário popular. Depois de inspirar a música, grandes obras da literatura e do cinema brasileiro, no último mês de março o rio ganhou o horário nobre da TV Globo, com a novela “Velho Chico”.

PAREDÕES ARENÍTICOS E ILHAS FLUVIAIS

Com paisagens inexplicáveis, o São Francisco se estende do sul para o norte devido a uma falha geológica. Ao percorrer suas margens, mistérios se revelam pelo percurso. Por isso, de Piranhas, a ideia é seguir pelo interior do estado acompanhando as curvas do rio, que, ora se esgueira entre os gigantes paredões areníticos do Cânion do Xingó, ora cruza vilas de artesãos como Entremontes, ilhas fluviais, como a Ilha do Ferro, além de sítios arqueológicos com pinturas rupestres como se vê em Olho d’Água do Casado. É só depois de banhar todas esses lugares e essas atrações que, finalmente, o São Francisco alcança o mar de Piaçabuçu.

O roteiro pode ser feito através de agência especializada (destinoalagoas.com) ou de forma independente, em carro alugado, para quem quer ter autonomia para decidir a próxima parada para um banho de rio.

A cidade presépio e o sertão de Lampião

Só a cidade de Piranhas, em Alagoas, com suas casas coloridas, valeria a jornada. O lugar convida a desacelerar, experimentar um surubim à beira d’água e se entregar ao arrasta-pé ao ar livre que toma conta da cidade no fim de semana. Mais do que a arquitetura preservada, há várias opções de passeios e mergulhos no São Francisco e muitos causos sobre uma das sagas mais intrigantes do país. Foi ali, às margens do rio, que uma emboscada deu fim à perseguição de mais 20 anos a Virgulino Ferreira da Silva, o temido Lampião, já proclamado Robin Hood do Nordeste.

Para se inteirar sobre o tema, visite o Museu do Sertão, onde há documentos, relíquias e fotos da época. A mais clássica revela cabeças dos cangaceiros assassinados na região que acabaram virando exposição na escadaria da atual prefeitura da cidade.

Quem quer se aprofundar na trama, pode contratar um passeio de barco rumo à chamada Rota do Cangaço, que leva os turistas ao último esconderijo de Lampião antes da emboscada final. Durante o tour (R$ 50 por pessoa), a história do bando de Virgulino e Maria Bonita é contada por guias vestidos de cangaceiros, que conduzem os visitantes até a Grota de Angico, local que foi o ponto do massacre que deu fim ao mais famoso grupo de cangaceiros do país.

O catamarã parte do cais de Piranhas e navega por cerca de meia hora até o município de Poço Redondo, em Sergipe. Ao longo do percurso, é provável cruzar com pequenas canoas de moradores e avistar mulheres das comunidades ribeirinhas lavando a roupa no rio. Ao redor, o cenário é formado por paredões rochosos cobertos pela vegetação da caatinga.

Quando chegam ao chamado Cangaço Eco Parque, os turistas são convidados a percorrer a trilha de 700 metros em meio à vegetação rústica para conhecer os cenários por onde perambulavam os guerrilheiros em uma vida nômade. Entre um umbuzeiro e outro, o guia dá detalhes precisos sobre a atuação do grupo.

Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, nasceu em 1898 em Vila Bela, atual Serra Talhada, no interior de Pernambuco. Ex-almocreve (espécie de tropeiro), entrou para o cangaço para vingar a morte do pai, tendo passado metade de seus 40 anos no comando do bando que espalhou terror pelos sertões de quase todos os estados do Nordeste. Assaltava fazendas, sequestrava coronéis para pedir resgate e saqueava comboios e armazéns. Não tinha moradia fixa: vivia perambulando pelo sertão, praticando seus crimes e fugindo da polícia, mas diz a lenda que também ajudava os mais pobres, comprava remédios para crianças doentes e distribuía alimentos saqueados.

NO FIM DA TRILHA, UM MERGULHO

Em cerca de uma hora de trilha chega-se ao ponto onde o cangaceiro morreu numa emboscada da polícia alagoana, na madrugada de 28 de julho de 1938, na fazenda conhecida como Angicos. A seu lado estava Maria Bonita, a destemida baiana por quem se apaixonou. Apesar do rastro de violência, a estada no sertão revela que os valentes cangaceiros marcaram a cultura da época, e inspiraram não só música, poesia, dança e artesanato, como histórias de amor, vingança e heroísmo.

Na volta da trilha, a dica é se refrescar do calor em um mergulho nas águas do São Francisco, seguido de um almoço com peixes da região, em um restaurante agradável, sob a sombra de árvores frondosas.

Em Piranhas fica o acesso ao restaurante Karranca’s, que oferece uma boa estrutura e de onde saem os principais passeios em lanchas ou catamarãs que seguem pelos cânions do Xingó, esculpidos há cerca de 60 milhões de anos.

Os paredões formam imponentes avenidas de arenito entre as quais é possível navegar pelas mansas águas do Velho Chico, desaceleradas pela barragem que o transformou em um grande lago de 60km de extensão. O passeio de catamarã dura em torno de duas horas.

A cena que se descortina não poderia ser mais entusiasmante. Entre as formações de granito rochoso, a água cristalina, verde-esmeralda, vai preenchendo cada reentrância do que se poderia chamar de oásis do semiárido. Ali, na fronteira entre os estados de Alagoas e Sergipe, o capricho da natureza e a mão do homem uniram-se numa das mais belas paisagens do Nordeste.

O cânion do São Francisco está entre os cinco maiores do mundo e é o maior navegável do Brasil. As águas seguem em trechos de até 140 metros de profundidade entre paredões de 50 metros de altura, que parecem ter sido talhados a mão.

Aventura pela caatinga e os paredões de pedra

Para quem é adepto das viagens “com aventura”, a pedida é explorar o visual da parte alta dos paredões de Delmiro Gouveia. A cerca de 50km de Piranhas, a cidade oferece ângulos impressionantes dos cânions. Mais rústico e menos “badalado” do que o vizinho, o município encanta o público interessado em natureza preservada e cultura regional.

A principal atração é a trilha pela vegetação da caatinga guiada por José Francisco, um senhor de 75 anos, com disposição de 20 e histórias para uma vida inteira de prosa. Ele é proprietário de alguns chalés, operador de turismo, escalador, beato e uma espécie de mago da caatinga. Conhece de olhos fechados cada xiquexique, mandacaru e umbuzeiro do caminho e indica as melhores raízes e folhas para cada apuro: infecção, intoxicação, mau hálito e até preguiça.

— Sabe aquele dia em que o homem acorda sem ânimo nenhum para trabalhar, dando de querer ficar na cama? A mulher vai lá pega a folha do anjico e faz um chá que o marido levanta na hora — explica o guia.

A trilha de cerca de 2km parte dos chalés do “seu” Francisco e segue em clima pitoresco com direito a encenação de vaqueiros cruzando a caatinga e a surpresa após última curva antes do Mirante do Talhado. Dali, os cânions e o lago com as águas do São Francisco parecem miragem.

Depois do trekking, “seu” Francisco convence os mais desconfiados a encarar a descida íngreme com apoio de cordas, na Gruta do Talhado. A descida dá direito a mergulho em águas translúcidas ou ou passeio de canoa por estreitos paredões.

Há opções mais radicais para explorar o cenário como escalar os paredões, pendurar-se em rapel ou se render a saídas de caiaque em um ritmo tranquilo e silencioso. Remando também é mais fácil visualizar nos cânions os vestígios — como pinturas rupestres e fragmentos de cerâmica — dos primeiros habitantes que viveram pela região há oito mil anos.

No fim das atividades, uma lancha leva os turistas ao Restaurante do Castanho, que oferece tentadoras redes sob a sombra de cajueiros à beira d’água. Dali mesmo você pode encomendar um peixe fresquinho ou um bode guisado. Experimentar algum prato à base de bode é quase um ritual no sertão. O restaurante também oferece saídas de barco para o Vale dos Mestres (R$ 60), um recanto com águas mornas e claras a 20 minutos dali para quem acha que mais um mergulho nunca é demais.

ARTESANADO NAS VILAS DO CHICO

Uma opção com menos adrenalina são os passeios pelas vilas ribeirinhas que concentram artistas populares, casario simples e sossego.

A vila de Entremontes, onde se chega de barco desde Piranhas (preço a combinar com os barqueiros no cais da cidade), parece ter parado no tempo. Conhecido pelos delicados bordados de redendê, o povoado também se orgulha de ter recebido visita de Dom Pedro II no século XIX. A atração ali é a singeleza da rotina das mulheres que passam o dia na soleira de casa bordando, conversando e ensinando a arte para filhas e netas. Para quem quer conhecer mais da técnica, não há cerimônias. As bordadeiras fazem questão de abrir as portas de suas casas, apresentar os trabalhos e contar suas histórias.

A próxima parada do roteiro é a Ilha do Ferro, no município vizinho de Pão de Açúcar, a 80km de Piranhas. O povoado fica a 18km da cidade. A dica é experimentar a gastronomia ribeirinha com pratos à base de pitu e descobrir o artesanato original. O lugar tem chamado a atenção de curadores por conta da autenticidade e sofisticação de esculturas de madeira talhadas por artistas sem formação na área e que se inspiram na natureza para transformar troncos em imagens de aves, jaguatiricas, peixes. A ideia é ir de carro até lá e contratar um barquinho (R$ 60) para navegar por sítios paleontológicos e acessar a comunidade de artesãos que abrem suas portas aos poucos turistas que chegam. Não há opção de hospedagem. O jeito é seguir caminho.

No trecho final, o Velho Chico descortina uma paisagem tão surreal quanto a que inicia a rota. A chegada ao litoral é marcada pela passagem por Penedo (180km de Pão de Açúcar), uma espécie de Ouro Preto do Nordeste, com igrejas barrocas e casarões coloniais margeadas pelas águas do Velho Chico.

A próxima parada, a 20km, é Piaçabuçu. De lá partem barcos até o delta do rio. O pacato município, a 13km da foz, é lotado de canoas de tolda (embarcação típica). O cenário bucólico e paradisíaco já foi parar nas telas de cinema. Em 2002, Antônio Fagundes e Wagner Moura desembarcaram na região e contracenaram com alguns moradores no longa “Deus é brasileiro”, que ressalta a força tropical da paisagem que se desenha entre densos coqueirais, dunas douradas, mar turquesa e rio esmeralda.

A melhor opção ali é se hospedar na praia do Pontal do Peba de onde saem passeios de buggy pela Mata Atlântica, fazendas de coqueiros e a preservada paisagem de restinga. O ponto alto é a passagem por um conjunto de dunas de 40 metros de altura, onde o pôr do sol é definitivamente extasiante. Vista melhor do que essa, só se for em voo de parasail, um tipo de paraquedas acoplado ao jipe que nos garante uma singular vista aérea da foz. Voltando para o chão, seu último dilema em Alagoas será decidir entre mergulhar nas águas azuladas do Atlântico ou nas águas doces e mornas do Velho Chico.

Fonte: O Globo

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